§176. Evangelizar é tornar o Reino de
Deus presente no mundo. «Nenhuma definição parcial e fragmentada, porém,
chegará a dar razão da realidade rica, complexa e dinâmica que é a
evangelização, a não ser com o risco de a empobrecer e até mesmo de a mutilar».
Desejo agora partilhar as minhas preocupações relacionadas com a dimensão
social da evangelização, precisamente porque, se esta dimensão não for
devidamente explicitada, corre-se sempre o risco de desfigurar o sentido
autêntico e integral da missão evangelizadora.
§177. O querigma possui um conteúdo
inevitavelmente social: no próprio coração do Evangelho, aparece a vida
comunitária e o compromisso com os outros. O conteúdo do primeiro anúncio tem
uma repercussão moral imediata, cujo centro é a caridade.
Confissão da fé
e compromisso social
§178. Confessar um Pai que ama
infinitamente cada ser humano implica descobrir que «assim lhe confere uma
dignidade infinita».
Confessar que o Filho de Deus assumiu a nossa
carne humana significa que cada pessoa humana foi elevada até ao próprio
coração de Deus.
Confessar
que Jesus deu o seu sangue por nós impede-nos de ter qualquer dúvida acerca do
amor sem limites que enobrece todo o ser humano. A sua redenção tem um sentido
social, porque «Deus, em Cristo, não redime somente a pessoa individual, mas
também as relações sociais entre os homens».
Confessar
que o Espírito Santo atua em todos implica reconhecer que Ele procura permear
toda a situação humana e todos os vínculos sociais: «O Espírito Santo possui
uma inventiva infinita, própria da mente divina, que sabe prover a desfazer os
nós das vicissitudes humanas mais complexas e impenetráveis». A evangelização
procura colaborar também com esta ação libertadora do Espírito. O próprio
mistério da Trindade nos recorda que somos criados à imagem desta comunhão
divina, pelo que não podemos realizar-nos nem salvar-nos sozinhos.
A partir do
coração do Evangelho, reconhecemos a conexão íntima que existe entre
evangelização e promoção humana, que se deve necessariamente exprimir e
desenvolver em toda a ação evangelizadora.
A aceitação
do primeiro anúncio, que convida a deixar-se amar por Deus e a amá-Lo com o
amor que Ele mesmo nos comunica, provoca na vida da pessoa e nas suas ações uma
primeira e fundamental reação: desejar,
procurar e ter a peito o bem dos outros.
§179. Este laço indissolúvel entre a
recepção do anúncio salvífico e um efetivo amor fraterno exprime-se nalguns
textos da Escritura, que convém considerar e meditar atentamente para tirar
deles todas as consequências. É uma mensagem a que frequentemente nos
habituamos e repetimos quase mecanicamente, mas sem nos assegurarmos de que
tenha real incidência na nossa vida e nas nossas comunidades.
Como é
perigoso e prejudicial este habituar-se que nos leva a perder a maravilha, a
fascinação, o entusiasmo de viver o Evangelho da fraternidade e da justiça! A
Palavra de Deus ensina que, no irmão, está o prolongamento permanente da
Encarnação para cada um de nós: «Sempre que fizestes isto a um destes meus
irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40).
O que
fizermos aos outros, tem uma dimensão transcendente: «Com a medida com que
medirdes, assim sereis medidos» (Mt 7, 2); e corresponde à misericórdia divina
para conosco: «Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso. Não
julgueis e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados;
perdoai, e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado (...). A medida que usardes com
os outros será usada convosco» (Lc 6, 36-38).
Nestes
textos, exprime-se a absoluta prioridade da «saída de si próprio para o irmão»,
como um dos dois mandamentos principais que fundamentam toda a norma moral e
como o sinal mais claro para discernir sobre o caminho de crescimento
espiritual em resposta à doação absolutamente gratuita de Deus. Por isso mesmo,
«também o serviço da caridade é uma dimensão constitutiva da missão da Igreja e
expressão irrenunciável da sua própria essência». Assim como a Igreja é
missionária por natureza, também brota inevitavelmente dessa natureza a
caridade efetiva para com o próximo, a compaixão que compreende, assiste e
promove.
O Reino que nos
solicita
§180. Ao lermos as Escrituras, fica bem
claro que a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com
Deus. E a nossa resposta de amor também não deveria ser entendida como uma mera
soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados, o
que poderia constituir uma «caridade por receita», uma série de ações
destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o Reino de
Deus (cf. Lc 4, 43); trata-se de amar a Deus, que reina no mundo. Na medida em
que Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade,
de justiça, de paz, de dignidade para todos.
Por isso,
tanto o anúncio como a experiência cristã tendem a provocar consequências
sociais. Procuremos o seu Reino: «Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua
justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo» (Mt 6, 33). O projeto de
Jesus é instaurar o Reino de seu Pai; por isso, pede aos seus discípulos:
«Proclamai que o Reino do Céu está perto» (Mt 10, 7).
§181. O Reino, que se antecipa e cresce
entre nós, abrange tudo, como nos recorda aquele princípio de discernimento que
Paulo VI propunha a propósito do verdadeiro desenvolvimento: «Todos os homens e
o homem todo». Sabemos que «a evangelização não seria completa, se ela não
tomasse em consideração a interpelação recíproca que se fazem constantemente o Evangelho
e a vida concreta, pessoal e social, dos ho-mens». É o critério da
universalidade, próprio da dinâmica do Evangelho, dado que o Pai quer que todos
os homens se salvem; e o seu plano de salvação consiste em «submeter tudo a
Cristo, reunindo n’Ele o que há no céu e na terra» (Ef 1, 10).
O mandato
é: «Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda criatura» (Mc 16, 15),
porque toda «a criação se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a
revelação dos filhos de Deus» (Rm 8, 19).
Toda a criação
significa também todos os aspectos da vida humana, de tal modo que «a missão do
anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo tem destinação universal. Seu mandato de
caridade alcança todas as dimensões da existência, todas as pessoas, todos os
ambientes da convivência e todos os povos. Nada do humano pode lhe parecer
estranho». A verdadeira esperança cristã, que procura o Reino escatológico,
gera sempre história.
A doutrina da
Igreja sobre as questões sociais
§182. Os ensinamentos da Igreja acerca
de situações contingentes estão sujeitos a maiores ou novos desenvolvimentos e
podem ser objeto de discussão, mas não podemos evitar de ser concretos –sem
pretender entrar em detalhes– para que os grandes princípios sociais não fiquem
meras generalidades que não interpelam ninguém. É preciso tirar as suas
consequências práticas, para que «possam incidir com eficácia também nas
complexas situações hodiernas». Os Pastores, acolhendo as contribuições das
diversas ciências, têm o direito de exprimir opiniões sobre tudo aquilo que diz
respeito à vida das pessoas, dado que a tarefa da evangelização implica e exige
uma promoção integral de cada ser humano.
Já não se
pode afirmar que a religião deve limitar-se ao âmbito privado e serve apenas
para preparar as almas para o céu. Sabemos que Deus deseja a felicidade dos
seus filhos também nesta terra, embora estejam chamados à plenitude eterna,
porque Ele criou todas as coisas «para nosso usufruto» (1 Tm 6, 17), para que
todos possam usufruir delas. Por isso, a conversão cristã exige rever
«especialmente tudo o que diz respeito à ordem social e consecução do bem
comum».
§183. Por conseguinte, ninguém pode
exigir--nos que releguemos a religião para a intimidade secreta das pessoas,
sem qualquer influência na vida social e nacional, sem nos preocupar com a
saúde das instituições da sociedade civil, sem nos pronunciar sobre os
acontecimentos que interessam aos cidadãos. Quem ousaria encerrar num templo e
silenciar a mensagem de São Francisco de Assis e da Beata Teresa de Calcutá? Eles
não o poderiam aceitar. Uma fé autêntica –que nunca é cômoda nem
individualista– comporta sempre um profundo desejo de mudar o mundo, transmitir
valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa passagem por ela.
Amamos este magnífico planeta, onde Deus nos colocou, e amamos a humanidade que
o habita, com todos os seus dramas e cansaços, com os seus anseios e
esperanças, com os seus valores e fragilidades.
A terra é a
nossa casa comum, e todos somos irmãos. Embora «a justa ordem da sociedade e do
Estado seja dever central da política», a Igreja «não pode nem deve ficar à
margem na luta pela justiça». Todos os cristãos, incluindo os Pastores, são
chamados a preocupar-se com a construção dum mundo melhor. É disto mesmo que se
trata, pois o pensamento social da Igreja é primariamente positivo e
construtivo, orienta uma ação transformadora e, neste sentido, não deixa de ser
um sinal de esperança que brota do coração amoroso de Jesus Cristo.
Ao mesmo
tempo, «une o próprio empenho ao esforço em campo social das demais Igrejas e
Comunidades eclesiais, tanto na reflexão doutrinal como na prática».
Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium” Papa Francisco 24.11.2013
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