Unidos a Deus,
ouvimos um clamor
§187. Cada cristão e cada comunidade
são chamados a ser instrumentos de Deus ao serviço da libertação e promoção dos
pobres, para que possam integrar-se plenamente na sociedade; isto supõe estar
docilmente atentos, para ouvir o clamor do pobre e socorrê-lo.
Basta
percorrer as Escrituras, para descobrir como o Pai bom quer ouvir o clamor dos
pobres: «Eu bem vi a opressão do meu povo que está no Egito, e ouvi o seu
clamor diante dos seus inspetores; conheço, na verdade, os seus sofrimentos.
Desci a fim de os libertar (...). E agora, vai; Eu te envio...» (Ex 3, 7-8.10).
E Ele
mostra-Se solícito com as suas necessidades: «Os filhos de Israel clamaram, então,
ao Senhor, e o Senhor enviou-lhes um salvador» (Jz 3, 15). Ficar surdo a este
clamor, quando somos os instrumentos de Deus para ouvir o pobre, coloca-nos
fora da vontade do Pai e do seu projeto, porque esse pobre «clamaria ao Senhor
contra ti, e aquilo tornar-se-ia para ti um pecado» (Dt 15, 9). E a falta de
solidariedade, nas suas necessidades, influi diretamente sobre a nossa relação
com Deus: «Se te amaldiçoa na amargura da sua alma, Aquele que o criou ouvirá a
sua oração» (Sir 4, 6). Sempre retorna a antiga pergunta: «Se alguém possuir
bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu
coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele?» (1 Jo 3, 17).
Lembremos também com quanta convicção o
Apóstolo São Tiago retomava a imagem do clamor dos oprimidos: «Olhai que o
salário que não pagastes, aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos, está
a clamar; e os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do
universo».
§188. A Igreja reconheceu que a
exigência de ouvir este clamor deriva da própria obra libertadora da graça em
cada um de nós, pelo que não se trata de uma missão reservada apenas a alguns:
«A Igreja, guiada pelo Evangelho da Misericórdia e pelo amor ao homem, escuta o
clamor pela justiça e deseja responder com todas as suas forças».
Nesta
linha, se pode entender o pedido de Jesus aos seus discípulos: «Dai-lhes vós
mesmos de comer» (Mc 6, 37), que envolve tanto a cooperação para resolver as
causas estruturais da pobreza e promover o desenvolvimento integral dos pobres,
como os gestos mais simples e diários de solidariedade para com as misérias
muito concretas que encontramos. Embora um pouco desgastada e, por vezes, até
mal interpretada, a palavra «solidariedade» significa muito mais do que alguns
atos esporádicos de generosidade; supõe a criação duma nova mentalidade que
pense em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a
apropriação dos bens por parte de alguns.
§189. A solidariedade é uma reação
espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e o destino
universal dos bens como realidades anteriores à propriedade privada. A posse
privada dos bens justifica-se para cuidar deles e aumentá-los de modo a
servirem melhor o bem comum, pelo que a solidariedade deve ser vivida como a
decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde. Estas convicções e práticas
de solidariedade, quando se fazem carne, abrem caminho a outras transformações
estruturais e tornam-nas possíveis. Uma mudança nas estruturas, sem se gerar
novas convicções e atitudes, fará com que essas mesmas estruturas, mais cedo ou
mais tarde, se tornem corruptas, pesadas e ineficazes.
§191. Animados pelos seus Pastores, os
cristãos são chamados, em todo o lugar e circunstância, a ouvir o clamor dos
pobres, como bem se expressaram os Bispos do Brasil: «Desejamos assumir, a cada
dia, as alegrias e esperanças, as angústias e tristezas do povo brasileiro,
especialmente das populações das periferias urbanas e das zonas rurais – sem
terra, sem teto, sem pão, sem saúde – lesadas em seus direitos. Vendo a sua
miséria, ouvindo os seus clamores e conhecendo o seu sofrimento,
escandaliza-nos o fato de saber que existe alimento suficiente para todos e que
a fome se deve à má repartição dos bens e da renda. O problema se agrava com a prática
generalizada do desperdício».
§192. Mas queremos ainda mais, o nosso
sonho voa mais alto. Não se fala apenas de garantir a comida ou um decoroso
«sustento» para todos, mas «prosperidade e civilização em seus múltiplos
aspectos». Isto engloba educação, acesso aos cuidados de saúde e especialmente
trabalho, porque, no trabalho livre, criativo, participativo e solidário, o ser
humano exprime e engrandece a dignidade da sua vida. O salário justo permite o
acesso adequado aos outros bens que estão destinados ao uso comum.
Fidelidade ao
Evangelho, para não correr em vão
§193. Este imperativo de ouvir o clamor
dos pobres faz-se carne em nós, quando no mais íntimo de nós mesmos nos
comovemos à vista do sofrimento alheio. Voltemos a ler alguns ensinamentos da
Palavra de Deus sobre a misericórdia, para que ressoem vigorosamente na vida da
Igreja.
O Evangelho
proclama: «Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» (Mt 5,
7). O Apóstolo São Tiago ensina que a misericórdia para com os outros permite-nos
sair triunfantes no juízo divino: «Falai e procedei como pessoas que hão de ser
julgadas segundo a lei da liberdade. Porque, quem não pratica a misericórdia,
será julgado sem misericórdia. Mas a misericórdia não teme o julgamento» (2,
12-13).
Neste texto,
São Tiago aparece-nos como herdeiro do que tinha de mais rico a espiritualidade
judaica do pós-exílio, a qual atribuía um especial valor salvífico à
misericórdia: «Redime o teu pecado pela justiça, e as tuas iniquidades, pela
piedade para com os infelizes; talvez isto consiga prolongar a tua
prosperidade» (Dn 4, 24).
Encontramos
a mesma síntese no Novo Testamento: «Mantende entre vós uma intensa caridade,
porque o amor cobre a multidão dos pecados» (1 Pd 4, 8). Esta verdade permeou
profundamente a mentalidade dos Padres da Igreja, tendo exercido uma
resistência profética como alternativa cultural face ao individualismo
hedonista pagão. Recordemos apenas um exemplo: «Tal como, em perigo de
incêndio, correríamos a buscar água para o apagar (...), o mesmo deveríamos
fazer quando nos turvamos porque, da nossa palha, irrompeu a chama do pecado;
assim, quando se nos proporciona a ocasião de uma obra cheia de misericórdia,
alegremo-nos por ela como se fosse uma fonte que nos é oferecida e na qual
podemos extinguir o incêndio».
§195. Quando São Paulo foi ter com os
Apóstolos a Jerusalém para discernir «se estava a correr ou tinha corrido em
vão» (Gal 2, 2), o critério chave de autenticidade que lhe indicaram foi que
não se esquecesse dos pobres (cf. Gal 2, 10). Este critério, importante para
que as comunidades paulinas não se deixassem arrastar pelo estilo de vida
individualista dos pagãos, tem uma grande atualidade no contexto atual em que
tende a desenvolver-se um novo paganismo individualista.
§196. Às vezes somos duros de coração e
de mente, esquecemo-nos, entretemo-nos, extasiamo-nos com as imensas
possibilidades de consumo e de distração que esta sociedade oferece. Gera-se
assim uma espécie de alienação que nos afeta a todos, pois «alienada é a
sociedade que, nas suas formas de organização social, de produção e de consumo,
torna mais difícil a realização deste dom e a constituição dessa solidariedade
inter-humana».
Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium” Papa Francisco 24.11.2013
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