A leitura espiritual
§152. Há uma modalidade concreta para
escutarmos aquilo que o Senhor nos quer dizer na sua Palavra e nos deixarmos
transformar pelo Espírito: designamo-la por
«lectio divina». Consiste na leitura da Palavra de Deus num tempo de
oração, para lhe permitir que nos ilumine e renove. Esta leitura orante da
Bíblia não está separada do estudo que o pregador realiza para individuar a
mensagem central do texto; antes pelo contrário, é dela que deve partir para
procurar descobrir aquilo que essa mesma mensagem tem a dizer à sua
própria vida. A leitura espiritual dum texto deve partir do seu sentido
literal. Caso contrário, uma pessoa facilmente fará o texto dizer o que lhe
convém, o que serve para confirmar as suas próprias decisões, o que se adapta
aos seus próprios esquemas mentais. E isto seria, em última análise, usar o
sagrado para proveito próprio e passar esta confusão para o povo de Deus. Nunca
devemos esquecer-nos de que, por vezes, «também Satanás se disfarça em anjo de
luz» (2 Cor 11, 14).
§153. Na presença de Deus, numa leitura
tranquila do texto, é bom perguntar-se, por exemplo: «Senhor, a mim que
me diz este texto? Com esta mensagem, que quereis mudar na minha vida? Que é
que me dá fastídio neste texto? Porque é que isto não me interessa?»; ou então:
«De que gosto? Em que me estimula esta Palavra? Que me atrai? E porque me
atrai?». Quando se procura ouvir o Senhor, é normal ter tentações. Uma delas é
simplesmente sentir-se chateado e acabrunhado e dar tudo por encerrado; outra
tentação muito comum é começar a pensar naquilo que o texto diz aos outros,
para evitar de o aplicar à própria vida. Acontece também começar a procurar
desculpas, que nos permitam diluir a mensagem específica do texto. Outras vezes
pensamos que Deus nos exige uma decisão demasiado grande, que ainda não estamos
em condições de tomar. Isto leva muitas pessoas a perderem a alegria do
encontro com a Palavra, mas isso significaria esquecer que ninguém é mais
paciente do que Deus Pai, ninguém compreende e sabe esperar como Ele. Deus
convida sempre a dar um passo mais, mas não exige uma resposta completa, se
ainda não percorremos o caminho que a torna possível. Apenas quer que olhemos
com sinceridade a nossa vida e a apresentemos sem fingimento diante dos seus
olhos, que estejamos dispostos a continuar a crescer, e peçamos a Ele o que
ainda não podemos conseguir.
A escuta do povo
§154. O pregador deve também pôr-se à
escuta do povo, para descobrir aquilo que os fiéis precisam de ouvir. Um
pregador é um contemplativo da Palavra e também um contemplativo do povo. Desta
forma, descobre «as aspirações, as riquezas e as limitações, as maneiras de
orar, de amar, de encarar a vida e o mundo, que caracterizam este ou aquele
aglomerado humano», prestando atenção «ao povo concreto com os seus
sinais e símbolos e respondendo aos problemas que apresenta». Trata-se de relacionar a mensagem do texto bíblico com
uma situação humana, com algo que as pessoas vivem, com uma experiência que
precisa da luz da Palavra. Esta preocupação não é ditada por uma atitude
oportunista ou diplomática, mas é profundamente religiosa e pastoral. No fundo,
é uma «sensibilidade espiritual para saber ler nos acontecimentos a mensagem de
Deus», e isto é muito mais do que
encontrar algo interessante para dizer. Procura-se descobrir «o que o Senhor
tem a dizer nessas circunstâncias». Então
a preparação da pregação transforma-se num exercício de discernimento
evangélico, no qual se procura reconhecer – à luz do Espírito – «um “apelo”
que Deus faz ressoar na própria situação histórica: também nele e através dele,
Deus chama o crente».
§155. Nesta busca, é possível recorrer
apenas a alguma experiência humana frequente, como, por exemplo, a alegria dum
reencontro, as desilusões, o medo da solidão, a compaixão pela dor alheia, a
incerteza perante o futuro, a preocupação com um ser querido, etc.; mas faz
falta intensificar a sensibilidade para se reconhecer o que isso realmente tem
a ver com a vida das pessoas. Recordemos que nunca se deve responder a
perguntas que ninguém se põe, nem convém fazer a crônica da atualidade para despertar interesse; para isso, já existem os
programas televisivos. Em todo o caso, é possível partir de algum fato para que
a Palavra possa repercutir fortemente no seu apelo à conversão, à adoração, a
atitudes concretas de fraternidade e serviço, etc., porque acontece, às vezes,
que algumas pessoas gostam de ouvir comentários sobre a realidade na pregação,
mas nem por isso se deixam interpelar pessoalmente.
Recursos pedagógicos
§156. Alguns acreditam que podem ser
bons pregadores por saber o que devem dizer, mas descuidam o como, a
forma concreta de desenvolver uma pregação. Zangam-se quando os outros não os
ouvem ou não os apreciam, mas talvez não se tenham empenhado por encontrar a
forma adequada de apresentar a mensagem. Lembremo-nos de que «a evidente
importância do conteúdo da evangelização não deve esconder a importância dos
métodos e dos meios da mesma evangelização». A preocupação com a forma de pregar também é uma
atitude profundamente espiritual. É responder ao amor de Deus, entregando-nos
com todas as nossas capacidades e criatividade à missão que Ele nos confia; mas
também é um exímio exercício de amor ao próximo, porque não queremos oferecer
aos outros algo de má qualidade. Na Bíblia, por exemplo, aparece a recomendação para se preparar a pregação de modo a garantir
uma apropriada extensão: «Sê conciso no teu falar: muitas coisas em poucas
palavras» (Sir 32, 8).
§157. Apenas, para exemplificar,
recordemos alguns recursos práticos que podem enriquecer uma pregação e
torná-la mais atraente. Um dos esforços mais necessários é aprender a usar
imagens na pregação, isto é, a falar por imagens. Às vezes usam-se exemplos
para tornar mais compreensível algo que se quer explicar, mas estes exemplos
frequentemente dirigem-se apenas ao entendimento, enquanto as imagens ajudam a
apreciar e acolher a mensagem que se quer transmitir. Uma imagem fascinante faz
com que se sinta a mensagem como algo familiar, próximo, possível, relacionado
com a própria vida. Uma imagem apropriada pode levar a saborear a mensagem que
se quer transmitir, desperta um desejo e motiva a vontade na direção do
Evangelho. Uma boa homilia, como me dizia um antigo professor, deve conter «uma
ideia, um sentimento, uma imagem».
§158. Já dizia Paulo VI que os fiéis
«esperam muito desta pregação e dela poderão tirar fruto, contanto que ela seja
simples, clara, direta, adaptada». A simplicidade tem a ver com a linguagem
utilizada. Deve ser linguagem que os destinatários compreendam, para não correr
o risco de falar ao vento. Acontece frequentemente
que os pregadores usam palavras que aprenderam nos seus estudos e em certos
ambientes, mas que não fazem parte da linguagem comum das pessoas que os ouvem.
Há palavras próprias da teologia ou da catequese, cujo significado não é
compreensível para a maioria dos cristãos. O maior risco dum pregador é
habituar-se à sua própria linguagem e pensar que todos os outros a usam e
compreendem espontaneamente. Se se quer adaptar à linguagem dos outros, para
poder chegar até eles com a Palavra, deve-se escutar muito, é preciso partilhar
a vida das pessoas e prestar-lhes benévola atenção. A simplicidade e a clareza
são duas coisas diferentes. A linguagem pode ser muito simples, mas pouco clara
a pregação. Pode-se tornar incompreensível pela desordem, pela sua falta de
lógica, ou porque trata vários temas ao mesmo tempo. Por isso, outro cuidado
necessário é procurar que a pregação tenha unidade temática, uma ordem clara e
ligação entre as frases, de modo que as pessoas possam facilmente seguir o
pregador e captar a lógica do que lhes diz.
§159. Outra característica é a
linguagem positiva. Não diz tanto o que não se deve fazer, como sobretudo
propõe o que podemos fazer melhor. E, se aponta algo negativo, sempre procura
mostrar também um valor positivo que atraia, para não se ficar pela queixa, o
lamento, a crítica ou o remorso. Além disso, uma pregação positiva oferece
sempre esperança, orienta para o futuro, não nos deixa prisioneiros da
negatividade. Como é bom que sacerdotes, diáconos e leigos se reúnam
periodicamente para encontrarem, juntos, os recursos que tornem mais atraente a
pregação!
Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium” Papa Francisco 24.11.2013
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