O anúncio do Evangelho
§110. Depois de considerar alguns
desafios da realidade atual, quero agora recordar o dever que incumbe sobre nós
em toda e qualquer época e lugar, porque «não pode haver verdadeira
evangelização sem o anúncio explícito de Jesus como Senhor» e sem
existir uma «primazia do anúncio de Jesus Cristo em qualquer trabalho de
evangelização».
- Recolhendo as preocupações dos Bispos asiáticos, João
Paulo II afirmou que, se a Igreja «deve realizar o seu destino providencial,
então uma evangelização entendida como o jubiloso, paciente e progressivo
anúncio da Morte salvífica e Ressurreição de Jesus Cristo há de ser a vossa
prioridade absoluta». Isto é
válido para todos.
Todo o povo de Deus anuncia o Evangelho
§111. A evangelização é dever da
Igreja. Este sujeito da evangelização, porém, é mais do que uma instituição
orgânica e hierárquica; é, antes de tudo, um povo que peregrina para Deus.
Trata-se certamente de um mistério que mergulha as raízes na Trindade,
mas tem a sua concretização histórica num povo peregrino e evangelizador, que sempre transcende toda a necessária expressão
institucional. Proponho que nos detenhamos um pouco nesta forma de compreender
a Igreja, que tem o seu fundamento último na iniciativa livre e gratuita de
Deus.
Um
povo para todos
§112. A salvação, que Deus nos oferece,
é obra da sua misericórdia.
- Não há ação humana, por
melhor que seja, que nos faça merecer tão grande dom. Por pura graça, Deus atrai-nos
para nos unir a Si. Envia o
seu Espírito aos nossos corações, para nos fazer seus filhos, para nos
transformar e tornar capazes de responder com a nossa vida ao seu amor.
- A Igreja é enviada por Jesus
Cristo como sacramento da salvação oferecida por Deus. Através da sua ação evangelizadora, ela colabora como
instrumento da graça divina, que opera incessantemente para além de toda e
qualquer possível supervisão. Bem o exprimiu Bento XVI, ao abrir as reflexões
do Sínodo: «É sempre importante saber que a primeira palavra, a iniciativa
verdadeira, a atividade verdadeira vem de Deus e só inserindo-nos nesta
iniciativa divina, só implorando esta iniciativa divina, nos podemos tornar
também – com Ele e n’Ele – evangelizadores». O princípio da primazia da graça deve ser um farol que ilumine constantemente as
nossas reflexões sobre a evangelização.
§113. Esta salvação, que Deus realiza e
a Igreja jubilosamente anuncia, é para todos, e Deus criou um caminho para Se unir a cada um dos
seres humanos de todos os tempos. Escolheu convocá-los como povo, e não como
seres isolados. Ninguém se salva sozinho, isto é,
nem como indivíduo isolado, nem por suas próprias forças. Deus atrai-nos, no
respeito da complexa trama de relações interpessoais que a vida numa comunidade
humana supõe. Este povo, que Deus escolheu para Si e convocou, é a Igreja.
Jesus não diz aos Apóstolos para formarem um grupo exclusivo, um grupo de
elite. Jesus diz: «Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos» (Mt 28,
19). São Paulo afirma que no povo de Deus, na Igreja, «não há judeu nem grego
(...), porque todos sois um só em Cristo Jesus» (Gal 3, 28). Eu gostaria
de dizer àqueles que se sentem longe de Deus e da Igreja, aos que têm medo ou
aos indiferentes: o Senhor também te chama para seres parte do seu povo, e
fá-lo com grande respeito e amor!
§114. Ser Igreja significa ser povo de
Deus, de acordo com o grande projeto de amor do Pai. Isto implica ser o fermento de Deus no meio da humanidade; quer dizer
anunciar e levar a salvação de Deus a este nosso mundo, que muitas vezes se
sente perdido, necessitado de ter respostas que encorajem, deem esperança e
novo vigor para o caminho. A Igreja deve ser o lugar da misericórdia gratuita,
onde todos possam sentir-se acolhidos, amados, perdoados e animados a viverem
segundo a vida boa do Evangelho.
Um
povo com muitos rostos
§115. Este povo de Deus encarna-se nos
povos da Terra, cada um dos quais tem a sua cultura própria. A noção de cultura
é um instrumento precioso para compreender as diversas expressões da vida
cristã que existem no povo de Deus. Trata-se do estilo de vida que uma
determinada sociedade possui, da forma peculiar que têm os seus membros de se
relacionar entre si, com as outras criaturas e com Deus. Assim entendida, a
cultura abrange a totalidade da vida dum povo. Cada povo, na sua evolução histórica, desenvolve a
própria cultura com legítima autonomia. Isso
fica-se a dever ao fato de que a pessoa humana, «por sua natureza, necessita
absolutamente da vida social» e
mantém contínua referência à sociedade,
na qual vive uma maneira concreta de se relacionar com a realidade.
- O ser humano está sempre culturalmente situado: «natureza e cultura
encontram-se intimamente ligadas». A graça
supõe a cultura, e o dom de Deus encarna-se na cultura de quem o recebe.
§116. Ao longo destes dois milénios de
cristianismo, uma quantidade inumerável de povos recebeu a graça da fé, fê-la
florir na sua vida diária e transmitiu-a segundo as próprias modalidades
culturais.
- Quando uma comunidade acolhe
o anúncio da salvação, o Espírito Santo, fecunda a sua cultura com a força
transformadora do Evangelho. E assim, como podemos ver na história da Igreja, o
cristianismo não dispõe de um único modelo cultural, mas «permanecendo o que é,
na fidelidade total ao anúncio evangélico e à tradição da Igreja, o
cristianismo assumirá também o rosto das diversas culturas e dos vários povos
onde for acolhido e se radicar». Nos
diferentes povos, que experimentam o dom de Deus segundo a própria cultura, a
Igreja exprime a sua genuína catolicidade e mostra «a beleza deste rosto
pluriforme».
- Através das manifestações cristãs
dum povo evangelizado, o Espírito Santo embeleza a Igreja, mostrando-lhe novos
aspectos da Revelação e presenteando-a com um novo rosto. Pela inculturação, a Igreja «introduz os povos com as suas
culturas na sua própria comunidade», porque
«cada cultura oferece formas e valores positivos que podem enriquecer o modo
como o Evangelho é pregado, compreendido e vivido». Assim, «a Igreja, assumindo os valores das diversas culturas,
torna-se sponsa ornata monilibus suis, a noiva que se adorna com suas
jóias (cf. Is 61, 10)».
§117. Se for bem entendida, a
diversidade cultural não ameaça a unidade da Igreja. É o Espírito Santo,
enviado pelo Pai e o Filho, que transforma os nossos corações e nos torna
capazes de entrar na comunhão perfeita da Santíssima Trindade, onde tudo
encontra a sua unidade.
O Espírito Santo constrói a comunhão e a
harmonia do povo de Deus.
- Ele mesmo é a harmonia, tal
como é o vínculo de amor entre o Pai e o Filho. É Ele que suscita uma abundante e diversificada
riqueza de dons e, ao mesmo tempo, constrói uma unidade que nunca é
uniformidade, mas multiforme harmonia
que atrai.
- A evangelização reconhece com alegria estas múltiplas riquezas que
o Espírito gera na Igreja. Não faria justiça à lógica da encarnação pensar num
cristianismo monocultural e monocórdico. É verdade que algumas culturas
estiveram intimamente ligadas à pregação do Evangelho e ao desenvolvimento do
pensamento cristão, mas a mensagem revelada não se identifica com nenhuma delas
e possui um conteúdo transcultural. Por isso, na evangelização de novas
culturas ou de culturas que não acolheram a pregação cristã, não é
indispensável impor uma determinada forma cultural, por mais bela e antiga que
seja, juntamente com a proposta do Evangelho.
-A mensagem, que anunciamos, sempre apresenta alguma roupagem
cultural, mas às vezes, na Igreja, caímos na vaidosa sacralização da própria
cultura, o que pode mostrar mais fanatismo do que autêntico ardor
evangelizador.
§118. Os Bispos da Oceânia pediram que
a Igreja neste continente «desenvolva uma compreensão e exposição da verdade de
Cristo partindo das tradições e culturas locais», e instaram todos os
missionários «a trabalhar de harmonia com os cristãos indígenas para garantir
que a doutrina e a vida da Igreja sejam expressas em formas legítimas e
apropriadas a cada cultura». Não
podemos pretender que todos os povos dos vários continentes, ao exprimir a fé
cristã, imitem as modalidades adaptadas pelos povos europeus
num determinado momento da história, porque a fé não se pode confinar dentro
dos limites de compreensão e expressão duma cultura.
- É indiscutível que uma única cultura não esgota
o mistério da redenção de Cristo.
Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium” Papa Francisco 24.11.2013
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