Alegria
que se renova e comunica
2.
O grande risco do mundo atual, com sua múltipla e avassaladora oferta de
consumo, é uma tristeza individualista que brota do coração comodista e
mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência
isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de
haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de
Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de
fazer o bem. Este é um risco, certo e permanente, que correm também os crentes. Muitos caem nele, transformando-se em pessoas ressentidas, queixosas,
sem vida. Esta não é a escolha duma vida digna e plena, este não é o desígnio
que Deus tem para nós, esta não é a vida no Espírito que jorra do coração de
Cristo ressuscitado.
3.
Convido todo o cristão, em qualquer lugar e situação que se encontre, a renovar
hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a
decisão de se deixar encontrar por Ele, de O procurar dia a dia sem cessar. Não
há motivo para alguém poder pensar que este convite não lhe diz respeito, já
que «da alegria trazida pelo Senhor ninguém é excluído». Quem arrisca, o Senhor
não o desilude; e, quando alguém dá um pequeno passo em direção a Jesus,
descobre que Ele já aguardava de braços abertos a sua chegada. Este é o momento
para dizer a Jesus Cristo: «Senhor, deixei-me enganar, de mil maneiras fugi do
vosso amor, mas aqui estou novamente para renovar a minha aliança convosco.
Preciso de Vós. Resgatai-me de novo, Senhor; aceitai--me mais uma vez nos
vossos braços redentores». Como nos faz bem voltar para Ele, quando nos
perdemos!
-
Insisto uma vez mais: Deus nunca Se cansa de perdoar, somos nós que nos
cansamos de pedir a sua misericórdia. Aquele que nos convidou a perdoar
«setenta vezes sete» (Mt 18, 22) dá-nos o exemplo: Ele perdoa setenta
vezes sete. Volta uma vez e outra a carregar-nos aos seus ombros.
-
Ninguém nos pode tirar a dignidade que este amor infinito e inabalável nos
confere. Ele permite-nos levantar a cabeça e recomeçar, com uma ternura que
nunca nos defrauda e sempre nos pode restituir a alegria. Não fujamos da ressurreição
de Jesus; nunca nos demos por mortos, suceda o que suceder. Que nada possa mais
do que a sua vida que nos impele para diante!
4.
Os livros do Antigo Testamento preanunciaram a alegria da salvação, que havia
de tornar-se superabundante nos tempos messiânicos. O profeta Isaías dirige-se
ao Messias esperado, saudando-O com regozijo: «Multiplicaste a alegria, aumentaste
o júbilo» (9, 2). E anima os habitantes de Sião a recebê-Lo com cânticos:
«Exultai de alegria!» (12, 6). A quem já O avistara no horizonte, o profeta
convida-o a tornar-se mensageiro para os outros: «Sobe a um alto monte, arauto
de Sião! Grita com voz forte, arauto de Jerusalém» (40, 9). A criação inteira
participa nesta alegria da salvação: «Cantai, ó céus! Exulta de alegria, ó
terra! Rompei em exclamações, ó montes! Na verdade, o Senhor consola o seu povo
e se compadece dos desamparados» (49, 13).
-
Zacarias, vendo o dia do Senhor, convida a vitoriar o Rei que chega «humilde,
montado num jumento»: «Exulta de alegria, filha de Sião! Solta gritos de
júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti. Ele é justo e
vitorioso» (9, 9). Mas o convite mais tocante talvez seja o do profeta
Sofonias, que nos mostra o próprio Deus como um centro irradiante de festa e de
alegria, que quer comunicar ao seu povo este júbilo salvífico. Enche-me de vida
reler este texto: «O Senhor, teu Deus, está no meio de ti como poderoso salvador!
Ele exulta de alegria por tua causa, pelo seu amor te renovará. Ele dança e
grita de alegria por tua causa» (3, 17).
-
É a alegria que se vive no meio das pequenas coisas da vida quotidiana, como
resposta ao amoroso convite de Deus nosso Pai: «Meu filho, se tens com quê,
trata-te bem (...). Não te prives da felicidade presente» (Sir 14,
11.14). Quanta ternura paterna se vislumbra por detrás destas palavras!
5.
O Evangelho, onde resplandece gloriosa a Cruz de Cristo, convida
insistentemente à alegria. Apenas alguns exemplos: «Alegra-te» é a saudação do
anjo a Maria (Lc 1, 28).
A visita de Maria a Isabel faz com que João
salte de alegria no ventre de sua mãe (cf. Lc 1, 41).
No seu cântico,
Maria proclama: «O meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador» (Lc 1,
47).
E, quando Jesus começa o seu ministério, João exclama: «Esta é a minha
alegria! E tornou-se completa!» (Jo 3, 29).
O próprio Jesus «estremeceu
de alegria sob a ação do Espírito Santo» (Lc 10, 21).
A sua mensagem é
fonte de alegria: «Manifestei-vos estas coisas, para que esteja em vós a minha
alegria, e a vossa alegria seja completa» (Jo 15, 11).
A nossa alegria
cristã brota da fonte do seu coração transbordante. Ele promete aos seus
discípulos: «Vós haveis de estar tristes, mas a vossa tristeza há de converter-se
em alegria» (Jo 16, 20). E insiste: «Eu hei de ver-vos de novo! Então, o
vosso coração há de alegrar-se e ninguém vos poderá tirar a vossa alegria» (Jo
16, 22).
Depois, ao verem-No ressuscitado, «encheram-se de alegria» (Jo 20,
20).
-
O livro dos Atos dos Apóstolos conta que, na primitiva comunidade, «tomavam o
alimento com alegria» (2, 46). Por onde passaram os discípulos, «houve grande
alegria» (8, 8); e eles, no meio da perseguição, «estavam cheios de alegria»
(13, 52). Um eunuco, recém-batizado, «seguiu o seu caminho cheio de alegria»
(8, 39); e o carcereiro «entregou--se, com a família, à alegria de ter
acreditado em Deus» (16, 34). Porque não havemos de entrar, também nós, nesta
torrente de alegria?
6.
Há cristãos que parecem ter escolhido viver uma Quaresma sem Páscoa. Reconheço,
porém, que a alegria não se vive da mesma maneira em todas as etapas e
circunstâncias da vida, por vezes muito duras. Adapta-se e transforma-se, mas
sempre permanece pelo menos como um feixe de luz que nasce da certeza pessoal
de, não obstante o contrário, sermos infinitamente amados.
Compreendo as
pessoas que se vergam à tristeza por causa das graves dificuldades que têm de
suportar, mas aos poucos é preciso permitir que a alegria da fé comece a
despertar, como uma secreta mas firme confiança, mesmo no meio das piores angústias:
«A paz foi desterrada da minha alma, já nem sei o que é a felicidade (…). Isto,
porém, guardo no meu coração; por isso, mantenho a esperança. É que a
misericórdia do Senhor não acaba, não se esgota a sua compaixão. Cada manhã ela
se renova; é grande a tua fidelidade. (...) Bom é esperar em silêncio a
salvação do Senhor» (Lm 3, 17.21-23.26).
7.
A tentação apresenta-se, frequentemente, sob forma de desculpas e queixas, como
se tivesse de haver inúmeras condições para ser possível a alegria.
Habitualmente isto acontece, porque «a sociedade técnica teve a possibilidade
de multiplicar as ocasiões de prazer; no entanto ela encontra dificuldades
grandes no engendrar também a alegria». Posso dizer que as alegrias mais belas
e espontâneas, que vi ao longo da minha vida, são as alegrias de pessoas muito
pobres que têm pouco a que se agarrar.
Recordo também a alegria genuína
daqueles que, mesmo no meio de grandes compromissos profissionais, souberam
conservar um coração crente, generoso e simples. De várias maneiras, estas
alegrias bebem na fonte do amor maior, que é o de Deus, a nós manifestado em
Jesus Cristo. Não me cansarei de repetir estas palavras de Bento XVI que nos
levam ao centro do Evangelho: «Ao início do ser cristão, não há uma decisão
ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa
que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo».
8.
Somente graças a este encontro – ou reencontro – com o amor de Deus, que se
converte em amizade feliz, é que somos resgatados da nossa consciência isolada
e da auto-referencialidade.
-
Chegamos a ser plenamente humanos, quando somos mais do que humanos, quando
permitimos a Deus que nos conduza para além de nós mesmos a fim de alcançarmos
o nosso ser mais verdadeiro. Aqui está a fonte da ação evangelizadora. Porque,
se alguém acolheu este amor que lhe devolve o sentido da vida, como é que pode
conter o desejo de o comunicar aos outros?
Exortação
Apostólica “Evangelii Gaudium” Papa Francisco 24.11.2013
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