domingo, 26 de janeiro de 2014

Caridade na Verdade

 1. A caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira.
- O amor «caritas» é uma força extraordinária, que impele as pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz.
- É uma força que tem a sua origem em Deus, Amor eterno e Verdade absoluta. Cada um encontra o bem próprio, aderindo ao projeto que Deus tem para ele a fim de o realizar plenamente: com efeito, é em tal projeto que encontra a verdade sobre si mesmo e, aderindo a ela, torna-se livre (cf. Jo 8, 32).
- Por isso, defender a verdade, propô-la com humildade e convicção e testemunhá-la na vida são formas exigentes e imprescindíveis de caridade.
Esta, de facto, « rejubila com a verdade » (1 Cor 13, 6).

- Todos os homens sentem o impulso interior para amar de maneira autêntica: amor e verdade nunca desaparecem de todo neles, porque são a vocação colocada por Deus no coração e na mente de cada homem. Jesus Cristo purifica e liberta das nossas carências humanas a busca do amor e da verdade e desvenda-nos, em plenitude, a iniciativa de amor e o projeto de vida verdadeira que Deus preparou para nós.
- Em Cristo, a caridade na verdade torna-se o Rosto da sua Pessoa, uma vocação a nós dirigida para amarmos os nossos irmãos na verdade do seu projeto. De facto, Ele mesmo é a Verdade (cf. Jo 14, 6).

2. A caridade é a via mestra da doutrina social da Igreja.
- As diversas responsabilidades e compromissos por ela delineados derivam da caridade, que é — como ensinou Jesus — a síntese de toda a Lei (cf. Mt 22, 36-40). A caridade dá verdadeira substância à relação pessoal com Deus e com o próximo; é o princípio não só das micro relações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também das macro relações como relacionamentos sociais, económicos, políticos.
- Para a Igreja — instruída pelo Evangelho —, a caridade é tudo porque, como ensina S. João (cf.1Jo 4, 8.16) e como recordei na minha primeira carta encíclica, «Deus é caridade»: da caridade de Deus tudo provém, por ela tudo toma forma, para ela tudo tende.
- A caridade é o dom maior que Deus concedeu aos homens; é sua promessa e nossa esperança.
- Nos âmbitos social, jurídico, cultural, político e económico, ou seja, nos contextos mais expostos a tal perigo, não é difícil ouvir declarar a sua irrelevância para interpretar e orientar as responsabilidades morais.

- Daqui a necessidade de conjugar a caridade com a verdade, não só na direção assinalada por S. Paulo da «veritas in caritate» (Ef 4, 15), mas também na direção inversa e complementar da «caritas in veritate». A verdade há de ser procurada, encontrada e expressa na « economia » da caridade, mas esta por sua vez há de ser compreendida, avaliada e praticada sob a luz da verdade. Deste modo teremos não apenas prestado um serviço à caridade, iluminada pela verdade, mas também contribuído para acreditar a verdade, mostrando o seu poder de autenticação e persuasão na vida social concreta. Fato este que se deve ter bem em conta hoje, num contexto social e cultural que relativiza a verdade, aparecendo muitas vezes negligente se não mesmo refratário à mesma.

3. Pela sua estreita ligação com a verdade, a caridade pode ser reconhecida como expressão autêntica de humanidade e como elemento de importância fundamental nas relações humanas, nomeadamente de natureza pública.
- Só na verdade é que a caridade refulge e pode ser autenticamente vivida.
- A verdade é luz que dá sentido e valor à caridade. Esta luz é simultaneamente a luz da razão e a da fé, através das quais a inteligência chega à verdade natural e sobrenatural da caridade: identifica o seu significado de doação, acolhimento e comunhão.

- Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente. É o risco fatal do amor numa cultura sem verdade; acaba prisioneiro das emoções e opiniões contingentes dos indivíduos, uma palavra abusada e adulterada chegando a significar o oposto do que é realmente. A verdade liberta a caridade dos estrangulamentos do emotivismo, que a despoja de conteúdos relacionais e sociais, e do fideísmo, que a priva de amplitude humana e universal.
- Na verdade, a caridade reflete a dimensão simultaneamente pessoal e pública da fé no Deus bíblico, que é conjuntamente «Agápe» e «Lógos»:
Caridade e Verdade, Amor e Palavra.

4. Porque repleta de verdade, a caridade pode ser compreendida pelo homem na sua riqueza de valores, partilhada e comunicada. Com efeito, a verdade é «lógos» que cria «diá-logos» e, consequentemente, comunicação e comunhão. A verdade, fazendo sair os homens das opiniões e sensações subjetivas, permite-lhes ultrapassar determinações culturais e históricas para se encontrarem na avaliação do valor e substância das coisas.
- A verdade abre e une as inteligências no logos do amor: tal é o anúncio e o testemunho cristão da caridade.
- No atual contexto social e cultural, em que aparece generalizada a tendência de relativizar a verdade, viver a caridade na verdade leva a compreender que a adesão aos valores do cristianismo é um elemento útil e mesmo indispensável para a construção duma boa sociedade e dum verdadeiro desenvolvimento humano integral.

- Um cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social mas marginais. Deste modo, deixaria de haver verdadeira e propriamente lugar para Deus no mundo.
- Sem a verdade, a caridade acaba confinada num âmbito restrito e carecido de relações; fica excluída dos projetos e processos de construção dum desenvolvimento humano de alcance universal, no diálogo entre o saber e a realização prática.

5. A caridade é amor recebido e dado; é « graça » (cháris).
- A sua nascente é o amor do Pai pelo Filho no Espírito Santo. É amor que, pelo Filho, desce sobre nós. É amor criador, pelo qual existimos; amor redentor, pelo qual somos recriados. Amor revelado e vivido por Cristo (cf.Jo 13, 1), é «derramado em nossos corações pelo Espírito Santo» (Rm5, 5). Destinatários do amor de Deus, os homens são constituídos sujeitos de caridade, chamados a fazerem-se eles mesmos instrumentos da graça, para difundir a caridade de Deus e tecer redes de caridade.

- A esta dinâmica de caridade recebida e dada, propõe-se dar resposta a doutrina social da Igreja. Tal doutrina é, proclamação da verdade do amor de Cristo na sociedade; é serviço da caridade, mas na verdade. É ao mesmo tempo verdade da fé e da razão, na distinção e, conjuntamente, sinergia destes dois âmbitos cognitivos. O desenvolvimento, o bem-estar social, uma solução adequada dos graves problemas socioeconômicos que afligem a humanidade precisam desta verdade. Mais ainda, necessitam que tal verdade seja amada e testemunhada. Sem verdade, sem confiança e amor pelo que é verdadeiro, não há consciência e responsabilidade social, e a atividade social acaba à mercê de interesses privados e lógicas de poder, com efeitos desagregadores na sociedade, sobretudo numa sociedade em vias de globalização que atravessa momentos difíceis como os atuais.

Carta Encíclica “Caritas in Veritate” – Papa Bento XVI

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