Na crise do
compromisso comunitário
50. Antes de falar de algumas questões
fundamentais relativas à ação evangelizadora, convém recordar brevemente o
contexto em que temos de viver e agir. É habitual hoje falar-se dum «excesso de
diagnóstico», que nem sempre é acompanhado por propostas resolutivas e
realmente aplicáveis. Por outro lado, também não nos seria de grande proveito
um olhar puramente sociológico, que tivesse a pretensão, com a sua metodologia,
de abraçar toda a realidade de maneira supostamente neutra e asséptica. O que
quero oferecer situa-se mais na linha dum discernimento evangélico. É o
olhar do discípulo missionário que «se nutre da luz e da força do Espírito
Santo».
51. Não é função do Papa oferecer uma
análise detalhada e completa da realidade contemporânea, mas animo todas as
comunidades a «uma capacidade sempre vigilante de estudar os sinais dos
tempos». Trata-se duma responsabilidade
grave, pois algumas realidades hodiernas, se não encontrarem boas soluções,
podem desencadear processos de desumanização tais que será difícil depois retroceder.
- É preciso esclarecer o que pode ser um fruto
do Reino e também o que atenta contra o projeto de Deus. Isto implica não só
reconhecer e interpretar as moções do espírito bom e do espírito mau, mas
também – e aqui está o ponto decisivo – escolher as do espírito bom e rejeitar
as do espírito mau. Pressuponho as várias análises que ofereceram os outros
documentos do Magistério universal, bem como as propostas pelos episcopados
regionais e nacionais.
- Nesta Exortação, pretendo debruçar-me, brevemente e numa
perspectiva pastoral, apenas sobre alguns aspectos da realidade que podem deter
ou enfraquecer os dinamismos de renovação missionária da Igreja, seja porque
afetam a vida e a dignidade do povo de Deus, seja porque incidem sobre os
sujeitos que mais diretamente participam nas instituições eclesiais e nas
tarefas de evangelização.
Alguns desafios do mundo atual
52. A humanidade vive, neste momento,
uma viragem histórica, que podemos constatar nos progressos que se verificam em
vários campos. São louváveis os sucessos que contribuem para o bem-estar das
pessoas, por exemplo, no âmbito da saúde, da educação e da comunicação. Todavia
não podemos esquecer que a maior parte dos homens e mulheres do nosso tempo
vive o seu dia a dia precariamente, com funestas consequências. Aumentam
algumas doenças. O medo e o desespero apoderam-se do coração de inúmeras
pessoas, mesmo nos chamados países ricos.
- A alegria de viver frequentemente se
desvanece; crescem a falta de respeito e a violência, a desigualdade social
torna-se cada vez mais patente. É preciso lutar para viver, e muitas vezes
viver com pouca dignidade. Esta mudança de época foi causada pelos enormes
saltos qualitativos, quantitativos, velozes e acumulados que se verificam no
progresso científico, nas inovações tecnológicas e nas suas rápidas aplicações
em diversos âmbitos da natureza e da vida. Estamos na era do conhecimento e da
informação, fonte de novas formas dum poder muitas vezes anonimo.
Não a uma economia da exclusão
53. Assim como o mandamento «não matar»
põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje
devemos dizer «não a uma economia da exclusão e da desigualdade social». Esta
economia mata. Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem
abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é
exclusão. Não se pode tolerar mais o fato de se lançar comida no lixo, quando
há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social.
- Hoje, tudo entra no jogo da
competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. Em
consequência desta situação, grandes massas da população vêem-se excluídas e
marginalizadas: sem trabalho, sem perspectivas, num beco sem saída. O ser
humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e
depois lançar fora.
- Assim teve início a cultura
do «descartável», que aliás chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente
do fenômeno de exploração e opressão, mas duma realidade nova: com a exclusão,
fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive
nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos
não são «explorados», mas resíduos, «sobras».
54. Neste contexto, alguns defendem
ainda as teorias da «recaída favorável» que pressupõem que todo o crescimento econômico,
favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e
inclusão social no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos fatos,
exprime uma confiança vaga e ingênua na bondade daqueles que detêm o poder econômico
e nos mecanismos sacralizados do sistema econômico reinante. Entretanto, os
excluídos continuam a esperar. Para se poder apoiar um estilo de vida que
exclui os outros ou mesmo entusiasmar-se com este ideal egoísta,
desenvolveu--se uma globalização da indiferença.
- Quase sem nos dar conta,
tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, já não
choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos por cuidar deles,
como se tudo fosse uma responsabilidade de outrem, que não nos incumbe. A
cultura do bem-estar anestesia-nos, a ponto de perdermos a serenidade se o
mercado oferece algo que ainda não compramos, enquanto todas estas vidas
ceifadas por falta de possibilidades nos parecem um mero espetáculo que não nos
incomoda de forma alguma.
Não à nova idolatria do dinheiro
55. Uma das causas desta situação está
na relação estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu
domínio sobre nós e as nossas sociedades. A crise financeira que atravessamos
faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a
negação da primazia do ser humano.
- Criamos novos ídolos. A
adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-35) encontrou uma nova
e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura duma economia sem rosto
e sem um objetivo verdadeiramente humano. A crise mundial, que investe as
finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e
sobretudo a grave carência duma orientação antropológica que reduz o ser humano
apenas a uma das suas necessidades: o consumo.
56. Enquanto os lucros de poucos
crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem estar
daquela minoria feliz. - Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a
autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito
de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum. - Instaura-se
uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e
implacável, as suas leis e as suas regras. Além disso, a dívida e os
respectivos juros afastam os países das possibilidades viáveis da sua economia,
e os cidadãos do seu real poder de compra. A tudo isto vem juntar-se uma
corrupção ramificada e uma evasão fiscal egoísta, que assumiram dimensões
mundiais. A ambição do poder e do ter não conhece limites. Neste sistema que
tende a fagocitar tudo para aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja
frágil, como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado
divinizado, transformados em regra absoluta.
Exortação Apostólica “Evangelii
Gaudium” Papa Francisco 24.11.2013
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