Continua...
A missão que se encarna nas limitações humanas
41. Ao mesmo tempo, as enormes e
rápidas mudanças culturais exigem que prestemos constante atenção ao tentar
exprimir as verdades de sempre numa linguagem que permita reconhecer a sua
permanente novidade; é que, no depósito da doutrina cristã, «uma coisa é a
substância (...) e outra é a formulação que a reveste». Por vezes, mesmo
ouvindo uma linguagem totalmente ortodoxa, aquilo que os fiéis recebem, devido
à linguagem que eles mesmos utilizam e compreendem, é algo que não corresponde
ao verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo.
- Com a santa intenção de lhes comunicar
a verdade sobre Deus e o ser humano, nalgumas ocasiões, damos-lhes um falso
deus ou um ideal humano que não é verdadeiramente cristão. Deste modo, somos
fiéis a uma formulação, mas não transmitimos a substância. Este é o risco mais
grave. Lembremo-nos de que «a expressão da verdade pode ser multiforme. E a
renovação das formas de expressão torna-se necessária para transmitir ao homem
de hoje a mensagem evangélica no seu significado imutável».
42. Isto possui uma grande
relevância no anúncio do Evangelho, se temos verdadeiramente a peito fazer
perceber melhor a sua beleza e fazê-la acolher por todos. Em todo o caso, não
poderemos jamais tornar os ensinamentos da Igreja uma realidade facilmente
compreensível e felizmente apreciada por todos; a fé conserva sempre um aspecto
de cruz, certa obscuridade que não tira firmeza à sua adesão.
- Há coisas que se
compreendem e apreciam só a partir desta adesão que é irmã do amor, para além
da clareza com que se possam compreender as razões e os argumentos. Por isso, é
preciso recordar-se de que cada ensinamento da doutrina deve situar-se na
atitude evangelizadora que desperte a adesão do coração com a proximidade, o
amor e o testemunho.
43. No seu constante
discernimento, a Igreja pode chegar também a reconhecer costumes próprios não
diretamente ligados ao núcleo do Evangelho, alguns muito radicados no curso da
história, que hoje já não são interpretados da mesma maneira e cuja mensagem
habitualmente não é percebida de modo adequado. Podem até ser belos, mas agora
não prestam o mesmo serviço à transmissão do Evangelho.
- Não tenhamos medo de os
rever! Da mesma forma, há normas ou preceitos eclesiais que podem ter sido
muito eficazes noutras épocas, mas já não têm a mesma força educativa como
canais de vida. São Tomás de Aquino sublinhava que os preceitos dados por
Cristo e pelos Apóstolos ao povo de Deus «são pouquíssimos». E, citando Santo
Agostinho, observava que os preceitos adicionados posteriormente pela Igreja se
devem exigir com moderação, «para não tornar pesada a vida aos fiéis» nem
transformar a nossa religião numa escravidão, quando «a misericórdia de Deus
quis que fosse livre». Esta advertência, feita há vários séculos, tem uma atualidade
tremenda. Deveria ser um dos critérios a considerar, quando se pensa numa
reforma da Igreja e da sua pregação que permita realmente chegar a todos.
44. Aliás, tanto os Pastores como
todos os fiéis que acompanham os seus irmãos na fé ou num caminho de abertura a
Deus não podem esquecer aquilo que ensina, com muita clareza, o Catecismo da
Igreja Católica: «A imputabilidade e responsabilidade dum ato podem ser
diminuídas, e até anuladas, pela ignorância, a inadvertência, a violência, o
medo, os hábitos, as afeições desordenadas e outros fatores psíquicos ou
sociais».
Portanto,
sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar, com
misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que
se vão construindo dia após dia.
-
Aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura,
mas o lugar da misericórdia do Senhor que nos incentiva a praticar o bem
possível. Um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser
mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem transcorre os
seus dias sem enfrentar sérias dificuldades. A todos deve chegar a consolação e
o estímulo do amor salvífico de Deus, que opera misteriosamente em cada pessoa,
para além dos seus defeitos e das suas quedas.
45. Vemos assim que o compromisso
evangelizador se move por entre as limitações da linguagem e das
circunstâncias. Procura comunicar cada vez melhor a verdade do Evangelho num
contexto determinado, sem renunciar à verdade, ao bem e à luz que pode dar
quando a perfeição não é possível.
- Um coração missionário está consciente
destas limitações, fazendo-se «fraco com os fracos (...) e tudo para todos» (1
Cor 9, 22). Nunca se fecha, nunca se refugia nas próprias seguranças, nunca
opta pela rigidez auto-defensiva. Sabe que ele mesmo deve crescer na
compreensão do Evangelho e no discernimento das sendas do Espírito, e assim não
renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da
estrada.
Uma
mãe de coração aberto
46. A Igreja «em saída» é uma
Igreja com as portas abertas. Sair em direção aos outros para chegar às
periferias humanas não significa correr pelo mundo sem direção nem sentido.
Muitas vezes é melhor diminuir o ritmo, pôr de parte a ansiedade para olhar nos
olhos e escutar, ou renunciar às urgências para acompanhar quem ficou caído à
beira do caminho. Às vezes, é como o pai do filho pródigo, que continua com as
portas abertas para, quando este voltar, poder entrar sem dificuldade.
48. Se a Igreja inteira assume
este dinamismo missionário, há de chegar a todos, sem exceção. Mas, a quem
deveria privilegiar?
- Quando se lê o Evangelho,
encontramos uma orientação muito clara: não tanto aos amigos e vizinhos ricos,
mas sobretudo aos pobres e aos doentes, àqueles que muitas vezes são
desprezados e esquecidos, «àqueles que não têm com que te retribuir» (Lc 14,
14). Não devem subsistir dúvidas nem explicações que debilitem esta mensagem
claríssima. Hoje e sempre, «os pobres são os destinatários privilegiados do
Evangelho», e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino
que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo
indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais sozinhos!
49. Saiamos, saiamos para
oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Repito aqui, para toda a Igreja,
aquilo que muitas vezes disse aos sacerdotes e aos leigos de Buenos Aires:
prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas,
a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias
seguranças.
- Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa
num emaranhado de obsessões e procedimentos. Se alguma coisa nos deve
santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos irmãos
nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo,
sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida.
- Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos
nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam
em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá
fora há uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: «Dai-lhes vós
mesmos de comer» (Mc 6, 37).
Exortação Apostólica “Evangelii
Gaudium” Papa Francisco 24.11.2013
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